domingo, dezembro 29, 2013

Espera de

Aqueles vocábulos chapearam-me
a prata. Sem lirismos deixaram-me
em chumbo blindada
com fechadura corroída
pelo verdete
quando água, e não
os meus próprios unguentos,
penetrou por dentro
a música alheia
tornada tormenta.

quarta-feira, dezembro 25, 2013

Lides

Nem nos sonhos
tolerarei engodos
camas de gato
ardis ou logros
que encerrem
como propósito
manter emoções
em andas.
Não existe música cujo ritmo acerte
em fracturantes danças
nem o equilíbrio deve ser desbaratado
em lides de funâmbula
quando se transporta uma celha
com a última água
e na mão esquerda
uma brasa um resquício de chama

É teu o meu regaço
sejas leopardo apoiado
sobre a carne
garras da pata dianteira
esgravatando-me o mamilo
debatendo-se por um esguicho
leitoso ou sanguíneo.
Tudo isto é leal
e inequívoco.

domingo, novembro 17, 2013

Desbravámos os trópicos.

Sobre os trilhos
deitámos os corpos
avaliando a temperatura
do solo
até ao cerne do mundo.

Estugámos o passo sem resposta
numa finisterra de geografia oculta.
Olhos nos olhos
concebemos novo cosmos
com a veleidade de gestar
um universo condicionado.
Saciámos chave e fechadura
a porta não se abriu
e o cosmos que criámos
é mais hermético que o nosso.

quarta-feira, novembro 13, 2013

Vértices

Não me cruzarei
contigo numa viela
Não trocaremos olhares
nem congeminarás,
para o meu itinerário,
trajectórias acidentadas
O sol vai tardar a nascer
e não dispensarei
um segundo de escuridão
nem um milímetro cúbico
de pele a ninguém.

sexta-feira, novembro 08, 2013

Hadopelágica

A água resvala pelo açude
pesa nos oceanos
estáticos como embondeiros
profundos profundos
como as raízes
do salgueiro
em choro desfeito
que desce lento
para o reino do bréu

e do silêncio.

Ofídio

Pertenço a uma serpente
benévola que atravessa
Lisboa mordiscante.

Retirei-me das veias
mas atento sempre ao pulso
à espera de poder
trocá-lo pelo mergulho.


terça-feira, novembro 05, 2013

Vagem

Reabilito os vícios
ou antes rogo-lhes
que me recebam de volta,
que me leiam, ditem e digam.
Exijo a devolução da visão
do deslumbramento melancólico
e uma dentada de cão
no músculo atónito.
Reabilito os vícios
quero-os de volta ser
ervilha vestida da vagem
que me torna vagamente imóvel.
Quando despida
rolarei fecunda até ao coito.

domingo, novembro 03, 2013

Mutações

Talvez os meus olhos
tenham corrompido
o seu papel
julgando.
Hoje só perscrutam
- são o meu corpo todo,
profuso de tentáculos:
anémonas,
tudo palpam,
inventam sensações.

quinta-feira, outubro 31, 2013

Las meninas

O H. e a M. amam-se
e não se falam
O G. tem um gorro
Eu amo e não falo
Amo-os e não confesso
A L. é bela
A noite é a felicidade
Todos querem ser quem são
são-no agora
Todos querem ser quem não são
são-no agora



sábado, outubro 26, 2013

Argerich




"My mother was a goddess",
said the bloody daughter
while her uncertified father
said "bloody
because you love her"
- could have been you
  (it was certainly me
   and, so I hope,
   so will be mine).

[Foto: "Argerich, Bloody Daughter",de Stéphanie Argerich @ doc'13, Cinema São Jorge]



quinta-feira, outubro 24, 2013

Mater

Dos corpos eclipsa-se
a adversidade do atrito
tudo se torna macio
reverberação
rocha húmida
áureo de sol
lunarmente prateado
sal fresco
- não há coerências
nem que mencionar contrários

O que são prédios?
O que são estradas?
Ouço água, águias
o gelo canta
tangido por um fio de cabelo gigante
- quando bate na água
esta suspira mater



(forjado para o André, que nasceu ontem, enquanto ouvia Julianna Barwick, no Teatro Municipal Maria Matos)



quarta-feira, outubro 23, 2013

Pas sérieux

D'être poète
c'est d'avoir dix-sept
ans pour la vie
C'est d'être Rimbaud -
si tu peux,
si t'en veux -
pour la vie

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"On n’est pas sérieux, quand on a dix-sept ans", de Arthur Rimbaud

I
On n’est pas sérieux, quand on a dix-sept ans.
Un beau soir, foin des bocks et de la limonade,
Des cafés tapageurs aux lustres éclatants!
On va sous les tilleuls verts de la promenade
Les tilleuls sentent bon dans les bons soirs de juin!
L’air est parfois si doux, qu’on ferme la paupière ;
Le vent chargé de bruits, — la ville n’est pas loin,
A des parfums de vigne et des parfums de bière…

II
Voilà qu’on aperçoit un tout petit chiffon
D’azur sombre, encadré d’une petite branche,
Piqué d’une mauvaise étoile, qui se fond
Avec de doux frissons, petite et toute blanche…
Nuit de juin! Dix-sept ans! — On se laisse griser.
La sève est du champagne et vous monte à la tête…
On divague; on se sent aux lèvres un baiser
Qui palpite là, comme une petite bête…

III
Le cœur fou Robinsonne à travers les romans,
Lorsque, dans la clarté d’un pâle réverbère,
Passe une demoiselle aux petits airs charmants,
Sous l’ombre du faux-col effrayant de son père…
Et, comme elle vous trouve immensément naïf,
Tout en faisant trotter ses petites bottines,
Elle se tourne, alerte et d’un mouvement vif…
Sur vos lèvres alors meurent les cavatines…

IV
Vous êtes amoureux. Loué jusqu’au mois d’août.
Vous êtes amoureux - Vos sonnets la font rire.
Tous vos amis s’en vont, vous êtes mauvais goût.
Puis l’adorée, un soir, a daigné vous écrire…!

Ce soir-là… - vous rentrez aux cafés éclatants,
Vous demandez des bocks ou de la limonade…
On n’est pas sérieux, quand on a dix-sept ans
Et qu’on a des tilleuls verts sur la promenade.

domingo, outubro 20, 2013

Milagre

Enquanto roubo sono à noite
percorro um léxico aleatório
como se fizesse listas de presentes
para entes meus amados:
beijinhos  chupetas   acendalhas
azeitonas  café      búzios vazios
pipetas  cubos de gelo  pimenta
...
O meu ventre
namora-me as ideias
- flores nascem-me
nas entranhas
e isso é glorioso

quinta-feira, outubro 17, 2013

Manhã de sol

Quando ouvi aquelas palavras
- que não repetirei -
atirei-me à sua imunda cabeleira pintada.
Puxei-a numa extensão de dois metros
deixando-a depenada.
Pressionei os polegares
sobre os globos oculares
até sentir o fino invólucro
romper-se e o líquido borrifar-me
as articulações hidráulicas
- o nervo óptico aterrorizado
consciente de que não teria mais
utilidade.
Apertei-lhe o pescoço
mas não a deixei inanimada
cega ou com qualquer mácula
porque tudo isto pensei apenas
com o cérebro a abarrotar de cólera.

Sou civilizada. Em pequena,
ensinaram-me inglês, francês,
a gostar de cinema alemão expressionista
e italiano cinquentista, de Monet
e tudo aquilo me parecia coisa
da pequena-burguesia.

Devia conseguir esganar a fulanita
mas todas "as coisas do céu e da terra",
como lhes chamou Shakespeare
e que valem mais que "vã filosofia"
(o que não é mentira)
me impediram.

Crivei os dentes na carne salgada
os olhos resignaram-se à luz do dia
os músculos redescobriam o esforço
as pernas reconciliavam-se com os passos.
Uma entidade qualquer sussurrava-me ao âmago
"Nada de complicado,
aproveita a atenção do traço".

Na boca um sorriso escarninho.
Os pés seguiram caminho.




terça-feira, outubro 15, 2013

One gift

Cassandra's truth is
somehow black light
Be granted one gift alone
whilst any other is utterly denied
and since you have but black light
you might as well be blind

terça-feira, outubro 08, 2013

Tecelagem

Apostar num descontrolo tranquilo
e acreditar nele sem pressa
aderir por contacto imperceptível
- quase imobilidade.

O sedimento de uma camisa
de noite de teia aracnoideia,
dura-mater, pia-mater
meníngeo
que, nesta lentidão,
é agente numa epopeia
complacente

como uma pálpebra
que embalasse um olho.

É Outono e a chuva parou.

Antes florimos.
Agora, não passamos de
jardineiros da dor.



segunda-feira, outubro 07, 2013

Non Matter

Human things are to feel

Hummingbirds,
like unicorns,
simply do not exist

Human things are human beings
Human beings are feeling things
Still human
Still beings
Still things

Maybe they
too
do not exist



sexta-feira, outubro 04, 2013

Ataraxia

A translucent ocean
of NOTHINGNESS
is healing my heart
This liquid green thing
lingering
drinking my angel[ic] desire
Porcelain and steel bleed
      warming me
- this marble daughter



quinta-feira, outubro 03, 2013

Putrefacção

mundo pousado
sobre uma pedra
de gelo amolecido
baliza incerta
o país é um patim
que rola consoante os petardos
da tríade da prataria
dos donos do visco
e das coisas que cintilam
quando extraídas da mina

bêbedos como medronhos,
seres sem idade
com sexo grevista
e máscara amarrotada
já nem ao nada
se entregam

o que importa que
sempre tenham existido?
agora são às carradas
o planeta dá qual vaca leiteira,
e a economia divertida
enquanto o gelo derrete
nos pólos
e em exorbitantes whiskys


domingo, setembro 29, 2013

Imitação de Anaïs

o entrechocar dos talheres na cozinha
o guindaste içando a viga
o papel branco sobre a secretária
- nada disto eleva os meus pés do chão
  em tremores de terra particulares

quarta-feira, setembro 25, 2013

Casta Diva

Por mais que consertemos este prato
aplicando-lhe gatos, diríamos
que não emitirá mais miados.

Fosse bicho aleijado
seria alvejado
lágrimas chorá-lo-iam
suicidando-se cara abaixo,
enquanto a reverberação do tiro
trepidasse no tímpano.

sábado, julho 27, 2013

Pústula

A perda é uma cócega
insignificante e
pouco incomodativa
Se não lhe tocares,
passar-te-á-sem grande mossa
Mas, se lhe mexeres,
correrás o risco de formares
uma pústula
Purulenta, rebentará, alastrará,
eventualmente, secará,
deixando cicatriz
Não te coces -
há dores que a consciência não suporta
como um cigarro não combusta
num copo de cristal tapado
e ficas ali, a vê-lo
extinguir-se, inoperante
E isso lembra-te a perda
e coças a pústula
e abres a ferida
e acumulas
cicatriz sobre cicatriz.

domingo, julho 21, 2013

Julho sem fogo

Imperial e petiscos com sal,
a lembrar o mar do sul
ou o mar Morto.
É quase Agosto
e não cheira a fogo
que a austeridade consome tudo
- até o oxigénio.
Em S. Bento, Belém
nos largos do Caldas e do Rato,
nada de fumo branco
A Sá da Costa fecha a porta
um popular barbudo
arremessa, da galeria,
um sapato à bancada socialista
- um desperdício, mas o calor
anula o dano.
O país não vai a banhos,
ninguém se vai aos arames
- ainda deve haver comida
para remediados repastos.

Mas eu já passei fome
de comida e, embora
não seja coisa que apeteça,
garanto que, para alguns de nós,
seria imperativo saciar outros apetites
Para o estômago, qualquer migalha
pode ser iguaria.
Para a alma reservo linhas
- da Doris, da Duras e das pautas
de música, que outros
lêem e tocam,
que, para essas, sou analfabeta
Mas continuo desnutrida
Abunda, mais do que o oxigénio,
a fome de cultura.

segunda-feira, julho 08, 2013

Madalena

Saudade apertada
como um abraço no vazio
auto constritivo
resignação complacente
contristada
incógnita sem x
x que não era incógnita
que tinha massa,
volume, corpo, forma,
cabelo brilhante,
pele imaculada
carácter ebúrneo
x que cintilava
que já não é x.
Memória insolúvel.

segunda-feira, julho 01, 2013

Chão

Amarelas, rolam pelo chão.

Parecem mimosas
mas não são.
Deveriam cheirar como tal
mas não.

Quando a alopécia dos jacarandás
fixa as solas ao solo,
eis que aparecem, mimosas,
as flores amarelas incógnitas,
definindo toda a leveza
salvando-nos da decomposição
e da seiva que, neste caso,
não gera nem alimenta,
apenas nos alicerça.

segunda-feira, junho 03, 2013

Nick Cave

Toca piano
excreta licor salino e saliva
canta sexo, amores perdidos, homicídios.

Finda a liturgia, parte -
o rosto orvalhado
quatro botões desabotoados
o queixo levantado.
Cobriu-nos com tal vigor
que estamos marianamente grávidos.

sexta-feira, maio 24, 2013

Olympus

Carver,
I do love Bukowski
and Miller
and Sylvia and Nin,
but tomorrow
you will be the one
whispering in my ear,
playing me
as if I were
(and I am)
your little violin.

quarta-feira, maio 22, 2013

Protocolo

É bom receber um sorriso franco, caloroso, sincero,
proposições precedidas por modestos "por favor",
seguidas desse moderato cantabile que é um "obrigado",
proferidas em voz baixa e com dicção pausada
Quão mais macio é o quotidiano
quando perpassado de polidez e gentileza.

Pelo que me pergunto por que teimo
em ser uma pessoa tão bruta,
arremessando farpas e destilando acrimónia?

domingo, maio 19, 2013

Um

Um último pedido,
um abraço franco
de prolongado eterno
um abraço fraterno
mas também amante
um abraço com vagas,
ora laço apertado,
ora apertadíssimo.
Um abraço de seres fundidos
que exilasse as dores
da perda de entes queridos,
que os recolocasse na vida
mesmo que se fossem logo de seguida.
Um abraço quente e salvífico.

sexta-feira, maio 10, 2013

Florzinha

O teu peito sonolento é uma frésia no verão
exposta ao suavíssimo vento

sobe e desce lentamente
perfuma todo o ar do mundo
e arrebata os mais recônditos recantos de mim
que sou em ti.

quinta-feira, maio 02, 2013

Feijão

Vejo este navio na doca de Sta. Apolónia
e penso “é numa coisa destas que vais navegar,
não numa qualquer nau Catrineta,
em ruínas, obsoleta,
votada a ratos, avitaminoses e pragas,
que dessas já houve o que basta.
É numa coisa destas que tens de fazer uma viagem.
Nela não andarás nauseada
e banhar-te-ás em quatro piscinas:
uma ao sol, com bom cinema projectado no seu fundo
de água transparente coberto
e um portentoso bar de vinhos da nossa safra
magicamente suspenso sobre a mesma.
A outra também está descoberta, mas à sombra.
Aí ouvirás música clássica
enquanto devoras sobremesa atrás de sobremesa,
perfumada pelo cheiro do açúcar que carameliza sobre a custarda
É verdade que esta piscina está rodeada de colunas pseudo-bizantinas douradas. Paciência – bem sabes como é apanágio,
nos navios de cruzeiro, haver piroseira.
A terceira é interior, a sua água liberta um luxuriante vapor
com odor cítrico fresco que tudo irá recompor
A quarta é a minha preferida, também está aquecida
e lá decorre uma festa de arromba
com champagne, big band,
livros cujo papel resiste magicamente à água,
e abundam as tuas iguarias preferidas:
queijos, salgadinhos em miniatura,
bolo de morango da Avenida de Roma, gelados italianos
bifes suculentos, batatas fritas belgas ainda a escaldar
e estupidamente estaladiças.
Rimos à gargalhada, dizemos piadas sádicas
politicamente inaceitáveis e descabidas,
entregamo-nos à cretinice e não pedimos desculpa
- não há escrúpulos nem culpas.
Será a sala da Nossa Senhora do Paninho
embalada pelo doce balanço das ondas”

domingo, abril 28, 2013

Seiva

O sangue foge-me das veias
Observei a minha própria sepultura
e não estava vazia – já me continha
Alargo agora os elásticos constritivos da minha biografia,
descalço uma e depois outra meia
distraio a flora podal com os veios da madeira
pensando ”também através deles já correu seiva
como corre nos cactos que só contemplam areia"
Tudo parece perpassado e embebido de verdadejustiça.

terça-feira, abril 23, 2013

Animismo

Olho as coisas
através da película
da tela
da celulose fétida prensada
dos artefactos que me parecem
sempre animados e gesticulantes
- toco-as com um arranha-céus de vidro
de permeio.

Da lua do sol da terra,
onde me deito
para beijar os antípodas,
do cimento
do momento nómada
e inclemente,
periclitantes inteiros.
Os acordes são profusos
há luzes, gente bem-falante
e eu de caneta em punho
escrevente, extravagante,
informe e algo delirante.

Imóvel serei: película, tela, papel,
arranha-céus de vidro, lua, sol,
terra, cimento,
caneta no punho
delirante.

quinta-feira, abril 18, 2013

Desinteresse



Se te disser que não escrevo mais uma linha,
nem faço mais um desenho em fonemas
sem ser ungida pela água benta
que escorre da tua boca
por entre as tuas pernas,
espessa,
se a tua pena não titubear
uma ou outra letra?

Algures a montante do meu horizonte
existirá uma droga inspiradora
apesar da tua apatia,
um vocábulo que corra por mim acima
sem que eu sonhe com a tua risa,
um mundo onde não sejas
mão-de-obra e matéria-prima,
um não-lugar hipotético e patético
onde simplesmente inexistas
e que, por isso mesmo,
me desinteressa.

Algures uma sede que pode ser saciada
            uma mancha que pode ser apagada
            uma fome que pode ser satisfeita
            uma voz passível de ser silenciada.
Nenhuma será minha.

domingo, abril 14, 2013

Tricot

A verdade é-me oferecida
pelos artistas que a talham.
Leio-a tricotada por mim
em camisolas de poucas filas,
pequenas, condensadas,
com pontos caídos,
feitas de fios roídos pelas
traças, cores mescladas,
remates imperfeitos,
isentos de mentiras.

Deus é malha.

sábado, abril 06, 2013

Um Verão



Mergulho no oceano
carne de Marte
devotamente crua

Asteroideu com centos
de minúsculos dedos,
trepa lento
afugenta-me os medos
entra por mim
e descobre outros
oceano e lua em Minos

domingo, março 31, 2013

Templos

No dia em que todas as agendas do ocidente referem
o Filho do Homem,
o domingo em que regressou
depois de, sexta-feira, ter morrido na cruz,
nada mais nada menos do que "por nós",
só me lembro de ti, que morreste pela mesma morte,
deixando dois templos que não têm alternativa a adorar-te,
dois mausoléus de matéria orgânica e costas viradas,
capela mortuária com capela mortuária,
cultos belicosos da mesma entidade,
dois seres ignominiosos e antagónicos
que não te fazem justiça,
tal como catolicismo e ortodoxia
não fazem jus ao Cristo
e menos ainda a Maria.

sexta-feira, março 29, 2013

Biologia

A janela agiganta-se quando penetras na esquadria
abre-se de par em par sobre o teu colo primaveril
a rebentar de potenciais crianças,
azedas amarelas e aromáticas.
O caule dilata-se até ao teu pescoço agasalhado
irrigado pelo ouro fundido que reflui
de regresso ao bairro calcetado e bifurcado.

Os sentimentos microbianos foram erradicados
ou ter-se-ão ampliado?

sábado, março 23, 2013

Copperfields



Daqui a nada, festa –
cheiros, braços, pernas,
dentes arreganhados
cabelos cuidados
despromovidos a desgrenhados
num país açaimado
por um anjo retrógrado
que não se recusa a derrubar pela segunda vez
o muro de Berlim

Somos Arquimedes, Houdinis,
os David Copperfields de Dickens
que comem mar, sol,
iguarias bem mais tenras que metal.

quarta-feira, março 20, 2013

O lobo e o colibri

Nem cumprindo o trajecto inverso
poderia esquecer a nudez
que imperava sobre o nosso encontro.
Embebida de rituais de intersecção
tornou complexo e escrúpulo
os nossos corpos um no outro,
quando outrora morremos na boca
e tudo isso era puro.

Por mais que escale cavidades dentárias
não hei-de alcançar a ponta da tua língua.

sexta-feira, março 15, 2013

Analogia

Dispenso relógios, ábacos
aventais e emulsões
inspiro até as flores murcharem
crianças e velhos desmaiarem.
Sou fome-sede de mil anos
e cresço
Dêem-me rios de tinta
que a destilarei como um polvo
sobre papiro.

quarta-feira, março 13, 2013

Asas

Esta coisa das palavras
que querem ser agarradas
apalpadas, saias levantadas
e agora nada

querem ser escritasditasdifundidas
mas afinal são todas tímidas,
tornou-se demasiado familiar

São pássaros
sem radícula nem grilhão
beleza ambulacrária
oriunda de uma anatomia tropical
- boca, genitais, mão -
que enrolam tantas linhas coloridas
em torno do meu pescoço
que me degolam
como a uma galinha.

segunda-feira, março 11, 2013

Relento

Quando a água é boa
o repasto sacia
e o café reconforta
à sombra de centenas de páginas densas
ampliadas por bom vidro
equacionamos a possibilidade de esta dimensão ser única
e soberana
e isto deve ser bem assim
O prazer dos sentidos é de uma tal magnitude
(os olhos pestanejam húmidos
os músculos distendem-se
braços e pernas ganham pêlos sussurrantes
orifícios ululantes
dedos: sosseguem, não estejam tão tamborilantes
ossos recalcificados
pulmões purificados
rins lavados
linfa totalmente drenada
sangue oxigenado)
que o próprio físico forja uma nova física imaterial
e chama-lhe metafísica
Mas não preciso de mais nenhuma

O meu clitóris é um sonar exposto ao branco luar relento
mas o calor faria um cego crer estar sob um sol de Julho

quinta-feira, março 07, 2013

Henriques

O molusco rubro
suspirava por obscenidades de escriba
perpetradas pelos homónimos patifes
"Henrique... Henriques..."

Audaz, humedeceu as páginas
de bem vinte volumes
exposto à luz do lustre

Todas aquelas fêmeas trespassadas
pelos dois bêbedos gloriosos
(quase de certeza impotentes)
foram-no por sombras e vocábulos,
pelo genioglosso e pela caneta
e devem ter saído dali inflamadas
mas muito mal servidas

Ainda assim, passado meio século,
o molusco molhado empapa páginas
de tomos transatlânticos
cheios de palavreado.

segunda-feira, fevereiro 25, 2013

Scratch


My poems are born in sketch books
because sketches is what they are –
poor little scratches, insignificant traces
of cafés, coffee, black tea and lard.
My slightly bloody words
are little sentimental wounds
of a useless and fertile womb
which will carry no more
and because of that it sometimes whines
                                 sometimes even sobs
rebelling against its desolate destiny.

Singular and occasional drops of water
in a country drowning in sunlight
all the longing
blood craving for iron
what was never meant to be.

sábado, fevereiro 16, 2013

Tea and martini


“It isn’t popular or safe
to say I love him”,
I heared someone saying
while feeling the touch
of the moon,
which was white
and ever so glittery

As in a nocturne day-dream,
a fat and plumy space grew
unannounced
between me and I
No longer you and I
- just that odd space
in an inner midland
and you were within.

I don’t know if it is the moonlight
Tom Waits’ voice, this broken city
or just plain good old wine fooling,
but it strikes me as if
I am a person of extreme beauty
sitting with you in this crowded and noisy parlour
silently drinking tea and martini.

The present is whole forever.
The future isn’t meant to be.

terça-feira, fevereiro 12, 2013

Anoitecer

Absorvo a escassa luz do sol
que se despede, adormece
e me tornou fluorescente.
Sou os ponteiros do despertador,
pirilampos até de manhã.
Planta na fotossíntese,
quero todo o oxigénio
meu de direito
comer, beber
ser fecunda no meu leito.
Tu anoiteces-me.

sábado, fevereiro 02, 2013

Quarto minguante

Expulsas e exiges o meu corpo
de baixa voltagem,
neuronal e onírico,
o código e o códice,
o desenho da caligrafia,
o caracter.
Acossa-me o teu convite
sem prazo de validade,
feixe de paradoxos.
Vou vingar-me no papel,
sujá-lo com obscenidades, gatafunhos,
grãos de açúcar e cadáveres de formigas,
rasgar estas folhas ao meio, mascar-lhes os cantos,
queimá-las com chá a ferver e, depois de secas,
incendiá-las como Jeanne d'Arc
Lamenta-as, bispo de Beauvais,
- foste tu quem ditou a sorte
dos virgens rectângulos
Quando terminarem as folhas,
passarei ao tecido que me envolve
membros e torso.
Não envergarei
nada sobre a pele
além dos vergões da revolta.

sexta-feira, janeiro 18, 2013

dança

A minha mama nada na tua mão,
o meu abdómen queima,
as minhas mãos encharcam a sumaúma,
as fibras que, apertadas, pingavam
agora escorrem um lençol de água.
Cada milímetro da tua pele odeia-me,
cada pêlo meu toca-te como se fosse eu inteira.

Rasga estas páginas e amachuca-as,
esvazia a garrafa até ao fundo,
sorve o cigarro até à queimadura.
Dança.

quinta-feira, janeiro 17, 2013

cardápio



Se homem ou mulher
é muito mais do que se deve revelar.
Seja qual for a resposta,
o mais provável é ser falsa.
Trapézio que balança rápido
ouriço de barriga tenra e picos inúteis
copo de vinho tinto limpo
pincel de marta
malha de pura lã virgem
aguardente velha
bife do lombo cru
poema norte-americano
prosa nipónica
corpo estirado sobre a mesa
marquesa
cerveja irlandesa preta
ovo estrelado
noutros tempos, cigarros
lápis fanado no Ikea
blocos de papel com boa gramagem

domingo, janeiro 13, 2013

Branca

Partes com a lua
e deixas-me como ela
- nova, escondida,
sugando uma sombra autofágica
tremenda e irresistível -
interferindo com marés
boicotando partos

Também eu estou prenhe
- apenas oculto o ventre

sexta-feira, janeiro 11, 2013

Enciclopédia

O meu amor é a enciclopédia autista
que atravanca aquela prateleira,
desactualizada e desusada
só por ser enciclopédia

Aqui não há mais espaço,
só tempo. E daquele que é lento.